
Sempre estimei os momentos quietos e solitários no interior dos
transportes coletivos. Sei que disse quietos e solitários - e mantenho a
afirmação. Mesmo na hora do rush. Na hora do rush e com muita, muita
chuva. Meus pensamentos me distraem, invariavelmente.
Subo num ônibus
qualquer, encharcada - porque você sempre sabe onde está seu
guarda-chuva quando chove. Ele está em casa, feliz, sequinho, rindo da
sua cara. "Não fica triste", ele diria, "A gente se vê
outro dia. É só me pôr na bolsa e me carregar por aí. E nesse dia vai
fazer um solzão do caralho, sua otária, estúpida, cretina" (RISADAS
MAQUIAVÉLICAS, RISADAS MAQUIAVÉLICAS).
É curioso o que acontece
com a distribuição demográfica de um ônibus em dias de chuva.
Subitamente, há uma forte demanda pelo assento do corredor. A princípio
você pensa, "nossa, quantos lugares vazios", até que se dá conta de que
todas as partes do banco próximas à janela se encontram no mesmo estado
patético que você. Molhados, molhados.
Tento escolher aquele
que parece menos crítico, o que formou a menor pocinha d'água. Pego uma
folha de papel ofício na bolsa e trato de secar o banco. Uma operação
delicada, que requer um pouco de atenção para que se tire o máximo de
proveito da folha. Depois eu sento. Mais três segundos e a senhorinha ao
meu lado se levanta e puxa a cordinha. Puta que pariu. Custava ter avisado que tava de saída? Ficou ali assistindo minha odisséia, impassível. Velha filha da puta.
E uma crente com mp3 senta no lugar da velha.De pé, virada para mim e para a crente, uma moça alta e bem vestida tira
o celular da bolsa. É bonita, muito bonita. A moça, não a bolsa. Não
que a bolsa seja feia, eu realmente não prestei tanta atenção.
"Oi, amiga" , diz a moça ao atender o celular. Voz grossa. Não Zélia Duncan grossa. Apenas grossa. "Ai,
amiga, tô cheia de novidades. Eu sei que você também tem novidades,
estou louca para ouvir. Mas deixa eu começar pelas minhas". Pensando bem, acho que era meio Zélia Duncan grossa sim.
"Eu conversei com uma amiga em comum, ela acha que ele gosta de mim. Mas, sei lá, ele não demonstra nada.", conta.
Não
tinha como não rir. Quando a moça entrou no ônibus, toda imponente,
toda altiva, jamais pensei que ela partilhava das mesmas inseguranças
que o resto das mortais ao seu redor.
Me sentia impelida a responder as perguntas dela - e o fazia, em pensamento. "Eu
não gostaria que ele saísse com outras pessoas, amiga, será que ele tá
saindo com outras pessoas?" - (Provavelmente, Zélia, provavelmente.) -
"Porque, se ele gosta de mim..." - (Não, Zélia, caminho errado.) -
"Assim, eu acho, sabe, porque..." - (Não, Zélia, você não acha nada!) -
"Mas a amiga em comum disse que ele..." - (Caralho, Zélia, cê tá foda
hoje, hein?! ) - "Ele não demonstra nada..." - (There you go, Zélia,
there you go.) - "Então você acha que eu devo sair com o Cláudio hoje?" -
(Mas quem porra é Cláudio?) - "Cláudio!" - (...) - "Cláudio, o outro
cara!" - (Então vocé tá me perguntando se eu acho que você deve sair com
Cláudio - o outro cara?) - "'É, você acha que eu devo sair com ele
hoje?" - (Eu não sei, Zélia. Você quer?).
"..."
(...)
"Usa-me, Senhooor, usa-me, sonda-me, quebranta- me" - começa a cantar a crente do mp3 player - "Transforma-me, enche-me, e usa-me, Senhooor..."
Ok,
isso deve ser algum tipo de sinal. Chega de prestar atenção na conversa
dos outros - embora eu tenha reparado que a Zélia desligou o telefone
sem perguntar das novidades da amiga. Eu me levanto, puxo a cordinha e fico cantando, com voz grossa:
"Eh! Eh! Eh!
Espero a chuva cair
Na minha casa, no meu rosto
Nas minhas costas largas"